A síndrome do sabe tudo: uma sociedade massivamente infectada pela “razonite.”



A síndrome do sabe tudo.

Não é incomum na geração atual nos depararmos com cenas do tipo “eu sei bem do que estou afirmando” [mesmo não tendo formação na área], ou “tenho certeza do meu ponto de vista” [mesmo não dominando a tese]”, ou ainda, “outros até podem conhecer mais, mas ninguém nunca pontuou este item como eu”. 

Um dia desses me encontrei com um rapaz com curso superior, vida feita e estabilizada, com pouco menos de 60 anos, e que tinha uma convicção tão firme a ponto esbanjar a seguinte pérola: “Sobre este tema bíblico, ninguém no mundo inteiro entende mais do que eu”- um detalhe, ele era contador em um grande escritório, e não teólogo. Após uma série de indagações feitas por mim, percebi que ele nunca teve acesso a qualquer literatura séria a respeito do tema abordado, apenas a literaturas que não seguiam nenhum critério teológico sério.





Em outra ocasião, fui confrontado por um jovem que veementemente acreditava no tema da salvação com misturas entre fé e obras. No diálogo, ele foi enfático ao afirmar que o seu ponto de vista era imbatível. Então citei alguns livros e perguntei se ele havia lido algum. Ao afirmar que não, sugeri que após a leitura retomássemos o diálogo. Infelizmente, por algum motivo, o rapaz não apreciou a minha sugestão e me interpretou como arrogante. Enfim, como pôde ser exemplificado, há muitas histórias que refletem a proposta do título desta pequena nota – a síndrome do "sabe tudo".

A geração atual é marcada também pelo forte relativismo que tem por base os alicerces definidos pela pós-modernidade. Do ponto de vista filosófico, parece que quanto maior ou sólido se torna o relativismo, maior e mais sólida também se torna a síndrome do "sabe tudo". O que podemos entender por síndrome do "sabe tudo" seria uma espécie de inflamação doentia da razão. A demonstração de superioridade através do forte impulso de sempre querer estar com a razão. Gustl Rosenkranz, embora de forma cômica, descreveu esta síndrome chamando-a de razonite. 


Ele a define como sendo “uma doença altamente contagiosa que causa uma inflamação da razão e disfunções cerebrais sérias, além de um desequilíbrio emocional que torna as pessoas agressivas, intolerantes e impacientes. Sua principal característica é o forte impulso de querer sempre ter razão, custe o que custar”.





Outra equivalência ao pensamento cômico de Rosenkranz é o pensamento do músico Dario Pires de Araújo, que ironicamente descreve esse “mi, mi, mi do sabe tudo” como sendo a defesa da achometria, gostologia e pensometria. Achometria seria a ciência do “eu acho” [e ponto final]. Gostologia seria a ciência do eu gosto” [e é o que importa]. Pensometria seria a ciência do “é assim que eu penso” [e o resto não tem importância]. Claro, independentemente de a pessoa ser um profissional da área ou não. 

Na ciência da psiquê conhecemos este comportamento como o efeito Dunning-Kruger. Este efeito é o fenômeno pelo qual indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais que outros mais bem preparados. O artifício baseado na alucinação da sublimidade ou superioridade foi validado mediante uma série de experimentos concretizados por Justin Kruger e David Dunning, através da Universidade de Cornell. As conclusões foram reproduzidas no Journal of Personality and Social.

Por mais estranho que seja, esta síndrome se tornou comum e crescente na geração atual, atingindo pessoas de todos os níveis acadêmicos, sociais ou financeiros. Este parasita tem como hospedeiro principal qualquer indivíduo que se candidate a ser excêntrico, irrefletido, insensato, inestético, burlesco, despropositado, aético ou mesmo descuidado. Por exemplo, "eu não sou biólogo, mas sei mais que o biólogo. Eu não sou químico, mas sei mais que o químico. Eu não sou advogado, mas sei mais que o advogado. Eu não sou médico, mas sei mais que o médico. Eu não sou teólogo, mas sei mais que o teólogo". A lista segue quase indefinidamente. Saliento, porém, que o título acadêmico não viabiliza a infalibilidade de qualquer erudito.





Na forma mais simplificada, segundo Neucir Valentim, "a síndrome do “sabe-tudo” é o comportamento que caracteriza aquele tipo de gente que sempre acha que sabe todas as coisas. Dá palpite em tudo e sempre se acha o portador e porta-voz da verdade”. Basta ler uma única página, capítulo ou livro, e estas pessoas já forjam ou constroem um personagem latente. Mascaram a sua verdadeira identidade do “sabe nada”, suplantando-a com a máscara do “sabe tudo”. 

Basta acessar algumas poucas páginas da internet, mesmo Fake News, e já estão prontas a debater, mesmo contra qualquer ideia erudita ou de produção acadêmica séria. É nisto que se transformou a geração pós-moderna, pois o relativismo deu voz, razão, e, claro, também teimosia, arrogância e atrevimento as pessoas com tal patologia - e as redes sociais se tornaram as plataformas para dar espaço e ar de estrelismo a elas. 


Qual seria o antídoto para destruir o parasita do “sabe tudo” ou impedir que ele se aloje? Como estabelecer saúde psíquica preventiva diante de uma sociedade massivamente infectada pela “razonite”? O remédio preventivo ou curativo não é livremente comercializado ou negociado no mercado negro.

O antídoto está gratuitamente à disposição de qualquer um que se candidate a modéstia, respeito, moderação, ética, reflexão inteligente, prudência ou sabedoria. Perceber os próprios limites, reconhecer que há um infinito a ser descoberto, e ter a humildade de constatar que sua opinião pode estar equivocada, uma vez que há tantas pessoas especializadas e que sabem pelo menos uma vírgula a mais que você, é ser, acima de tudo respeitoso, honroso e honesto consigo mesmo. 


Não há virtude, sobriedade ou grandeza maior do que a humildade, pois é ela que nos faz sair do mundo da fantasia criada pela nossa soberana arrogância para nos trazer de volta à realidade à qual pertencemos. Washington Johans foi enfático ao descrever humildade como sendo a essência da vida. 

O educador e filósofo Mário Sérgio Cortella também pontuou que “gente grande de verdade, sabe que é pequena, e por isso cresce. Gente muito pequena, acha que já é grande”. 






Desvendar ou ultrapassar os limites do conhecimento é dever de todo ser inteligente, mas distinguir a linha que demarca os limites entre a sabedoria e a insensatez é uma grande virtude que, infelizmente, poucos conseguem enxergar e apalpar. 

A frase “sei que nada sei”, proferida por Sócrates no quinto século a.C., continua sendo o eco das afirmações dos poucos grandes e extraordinários homens de todos os tempos – incluindo o nosso. 

Por fim, como escreveu Matheus Oliveira, “o maior erro do ignorante é achar que sabe tudo, pois nunca estará realmente disposto a aprender”.



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